‘A mentira é tão importante quanto a verdade’, diz diretor franco-uruguaio

SANTOS Sergio Blanco gosta de jogar nas fronteiras. Uruguaio, o diretor e dramaturgo adotou há 20 anos cidadania e moradia francesas, mas segue escrevendo em espanhol e trabalhando com os compatriotas latinos. Nas suas peças, borra os limites entre verdadeiro e falso.

Isso porque a mentira, diz ele, seria tão importante quanto a verdade. “As duas constroem a experiência do ser humano e se alimentam uma da outra. Inclusive a fronteira entre elas é muito frágil, às vezes não sabemos dizer onde começa uma mentira e termina uma verdade.”

É dessa estremadura que nascem suas histórias. Blanco trabalha com a autoficção, parte de dados de sua própria biografia para inventar uma nova narrativa. “É um gênero que me permite intensificar essa questão da verdade e da mentira no teatro”, explica ele. “E o espectador é alguém que quer entrar nesse jogo. Vamos ao teatro porque queremos que nos mintam.”

Para tanto, coloca ele próprio em cena. Ou quase. Em “O Bramido de Düsseldorf”, que ele levou nesta semana ao Festival Mirada, em Santos, e agora apresenta em São Paulo, o franco-uruguaio bebe na sua história e faz do protagonista um dramaturgo também chamado Sergio Blanco (interpretado aqui por Gustavo Saffores).

Ele vai com seu pai (Walter Rey) a Düsseldorf, na Alemanha, por um motivo pouco claro. Primeiro, diz que escreveu o catálogo de uma exposição sobre o serial killer Peter Kürten, o Vampiro de Düsseldorf, e precisará acompanhar o vernissage. Depois, fala que foi convidado a escrever roteiros para filmes pornô —ele mesmo não entende bem, mas uma grande produtora teria visto suas peças e encontrado ali uma linguagem que lhes interessaria. E explica ainda que foi ao país para converter-se ao judaísmo. No meio disso tudo, seu pai adoece e fica à beira da morte.

Blanco, na realidade, nunca viajou a Düsseldorf. Certa vez, passou pela cidade de trem, e o nome estampado na estação lhe chamou a atenção. “Une o doce e o forte, e pensei que seria um bom título”, lembra o diretor.

A cidade serve apenas de mote para o diretor reunir temas que, de certo modo, tocam no desejo: sexual, religioso ou o impulso assassino. “É uma força que nos impulsiona e é também muito dolorosa. O desejo é sempre a busca de algo que não vamos alcançar, porque, no momento em que alcançamos, não o desejamos mais. A sociedade de consumo e o capitalismo funcionam com esse sistema, de desejar um mundo que não se pode alcançar. É um mecanismo que pode ser muito destruidor e perverso.”

Mas Blanco sabe brincar consigo mesmo e com sua obra. Há de fato dados de sua biografia, mas tudo está diluído na ficção. A todo tempo, joga-se com a ideia de que aquilo é teatro (há inclusive referências a outra peça do dramaturgo, “A Ira de Narciso”) e que nunca se sabe o que é verdade ou mentira. “A única certeza desse texto é que estamos em Düsseldorf”, diz o filho em cena.

Mesmo a morte do pai é tratada com certa ironia. Representa menos um luto pessoal e mais um reflexo sobre o coletivo, sobre as nossas falhas sociais.

Na região fronteiriça de Blanco, não há lugar para certezas, apenas para sua tese, que ele resume numa das falas mais sinceras do pai: “O que é verdade, o que é mentira. Não importa”.


A jornalista viajou a convite do Festival Mirada.

O Bramido de Düsseldorf

Sesc Avenida Paulista, av. Paulista, 119. Sáb. (15), às 21h30, e dom. (16), às 18h30. Ingr.: R$ 15 a R$ 50. 16 anos